O Personagem Principal de uma Ficção Caseira

Antenor, de cabelos brancos e cicatriz que transpassa verticalmente a boca, sentado na Praça Marechal Deodoro, no centro de São Paulo, em uma terça-feira de sol, não reclama da vida. Abomina este ato, afirmando que apenas ajuda a  “disseminar a negatividade entre as pessoas”.

Sobre esta frase, foi questionado pela Dona Edileusa, senhora com pose de fina, a la madame de novela global e corcunda saliente, moradora do bairro de Santa Cecília, se não deveria incluir os animais neste grupo, como sua cachorrinha Luli, uma poodle tosada e enfeitada, entretida com o movimento dos carros, que a acompanha em passeios diários há mais de dez anos.

Ademais, a senhora de colares vistosos e vestido florido, discursou sobre a escassez de produtos no supermercado, ofendeu a menina barulhenta do apartamento 21 e comentou da “infestação” de moradores de rua na região.

De educação ímpar, diferentemente do apelo midiático derivado do cotidiano de (in)felizes donas de casa, Antenor não vê seu animal de estimação como uma pessoa. Esta é complexa, repleta de discursos e posicionamentos, capaz de debater e rebater diversos pontos de vista. O cachorro é, simplesmente, seu fiel companheiro. Necessita e compartilha carinho, mas não é capaz de devanear sobre a vida além de um latido.

Como tratar o animal de estimação como o personagem principal de uma ficção caseira se, ao lado de casa, a realidade bate à porta almejando por comida?

Dona Edileusa retirou-se. A ração francesa aguardava por Luli. Antenor, lentamente, estendeu seu colchão de retalhos e, religiosamente, guardou seus sapatos em uma pequena “toca do Gugu”, em meio ao mato, e começou a pensar.

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Trinta Minutos

Sente-se, por favor, o Doutor te atenderá em alguns minutos. – disse a jovem secretária, enaltacendo a última parte da sentença. Pus-me a folhear jornais – nenhum atual, por sinal – e a mexer compulsivamente no celular. Dediquei-me, em seguida, à arte de estralar os dedos e a contar o número de livros na estante do médico. Logo resolvi descer à Starbucks mais próxima. Duas quadras. A fila estava enorme. Escolhi por um fraputino. Com sono, aconcheguei-me em uma das poltronas. Aproveitei para relaxar ao som de “So What”, do Miles Davis. Ouvi-a por inteiro. Acabei cochilando. Levantei-me. Encontrei um sebo. Folheei dois livros. Conversei com o dono. Vi uma ex-namorada. Discutimos. Assisti ao primeiro tempo da Champions League em um bar. Resolvi voltar. Passaram-se trinta minutos.

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Fade Out?

Almir, 52, homem de contrastes, principalmente em relação à sua altura, 1, 57, e seu egocentrismo, em um momento de ímpar genialidade – de seu ponto de vista-, resolveu agrupar todos o seus escritos de dez anos de trabalho na seção de perguntas e respostas de uma revista masculina em um único livro.

Abordara, neste período, desde o primeiro contato à moça da mesa ao lado, seja em um bar ou restaurante, diferenciando o tratamento em razão da idade e perfil, até formas de se fugir da ex-mulher amada, reiterando a necessidade, edição a edição, de trocar o celular, de modificar os horários de saída e chegada e de formar um laço de amizade com o porteiro do edifício, além de criar um sinal ou uma palavra chave caso haja alguma dama ao lado.

Vários homens – e mulheres que utilizavam as dicas contra seus maridos – agradeceram ao escritor pelas opiniões bem fundamentadas, o que o fez confiar na publicação e sucesso da empreitada.

Contudo, para Almir, apenas uma reunião de seus textos não seria suficiente. Prestes a chegar à terceira idade – pensamento que já carregava desde que chegou à casa dos 40 – sentou-se na mesa de seu apartamento, abriu seu notebook e decidiu que precisava de desafios.

É certo que em sua carreira de jornalista, por mais entrevistas realizadas ou respostas fornecidas, um assunto raramente havia sido abordado, visto que representa uma situação não tão nova, porém, pouco discutida. A questão era: “como terminar um relacionamento que nunca existiu”? Ou seja, não há um namoro, não há vínculo e não se deseja tê-lo. Como ser sutil neste caso e informar à pretendente que tudo está terminado, qual o melhor momento?

Almir mergulhou à fundo nesse debate. Visitou bares e baladas, entrevistou garçons e clientes, reunindo quinze horas de entrevistas, sendo úteis, em face do teor alcoólico, apenas 45 minutos. Durante as abordagens descobriu duas regras, as quais seriam basilares em seu livro.

A primeira sedimentava que jamais, em nenhuma circunstância, deveria se terminar um relacionamento após o sexo. O indivíduo A poderia não ter sentimento, mas isso não significa que B não o possua. “Interessante”, sorriu o escritor, ainda mais depois de saber que um dos seus entrevistados foi esfaqueado após a prática deste ato.

A segunda regra é o chamado fade out. Na música, é a diminuição lenta da canção e seu posterior sumiço. No cinema, a cena escurece lentamente e contempla-se o silêncio. No relacionamento é o desaparecimento lento, com a devida classe.

No mundo das artes, o jornalista dedicou-se aos filmes de Woody Allen, às músicas de Chico Buarque, a Machado de Assis e a Luis Fernando Veríssimo. Por fim, sentindo-se um futuro Neil Strauss, terminou as pesquisas e publicou o livro.

Sucesso único, líder nos rankings de livros mais vendidos da revista Veja. Almir participava semanalmente dos programas televisivos dedicados ao público feminino e era sempre aclamado.

Contudo, certa decepção tomou-lhe em um fim de semana. O objetivo do livro era a discussão de um assunto polêmico. Algo novo, impensado. Versado no submundo. Situação comum, mas sempre escamoteada.

No fim das contas, o resultado atingido não necessitava de um tratado. Independente do momento do casal, seja um casamento de 10 anos ou um relacionamento de três horas, duas regras mostraram-se bem mais importantes do que as acima explicitadas.

O trabalho poderia ter se baseado, simplesmente e sem muito estudo, na sinceridade e na educação.

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Astolfo e a Globalização

Era quase uma situação cotidiana na vida de Astolfo. Senhor de gênio forte, impetuoso, discutia com Deus e o mundo para defender suas opiniões, já petrificadas, em relação aos mais variados  assuntos. Da crise econômica européia, passando pela disputa dos pré-candidatos do Partido Republicano norte-americano à cachacinha advinda do interior de Minas Gerais que bebera com os primos na semana anterior.

Contudo, o mesmo não imaginava que, aos 62 anos, acabaria dentro de um pequeno caixote lacrado, com destino à Tailândia, no Porto de Santos. Por considerar apenas uma brincadeira de mau gosto, retirou uma pinga de dois reais de dentro do paletó e começou a cantarolar.

Uma hora depois, a cantoria transformou-se em pequenos chamados e, em seguida, em gritos desesperados. Certeza de que há um grupo rindo infinitamente, pensava o próprio. No entanto, ao sentir o caixote sendo erguido e deslocado, começou a debater-se e a chutá-lo. Fora isso, sobrara apenas um resquício da pinga, o que, na esperança de ser mais uma brincadeira, ressaltara aos berros.

Por fim acabou dormindo.

Astolfo, hoje aos 70 anos, é um rico empresário, pai de trigêmeos em Bangkok, capital da Tailândia. As histórias dizem que enriqueceu subitamente com a importação de bebidas da América do sul, mas ninguém sabe quando o negócio começou.

Em uma entrevista a um jornal local, Astolfo, visivelmente não fluente em tailandês, comentou que, ao desembarcar nas margens do rio Chao Phraya, oferecera os restos de uma bebida ao estivador que lhe abriu a caixa como forma de agradecimento e de primeiro contato. Em um ano já haviam aberto a primeira importadora.

Em terras tupiniquins somente se sabe que ele não retornou para casa. Não tinha filhos nem esposa. Ajeitava-se com uma vizinha do prédio ao lado, senhora fina e requintada, cujo marido era exportador.

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Destino

Estatelado. Colocou a mão direita sobre o solo e perbeceu-a dormente. Endireitou as costas e com as pernas ainda esticadas analisou a situação. À certa altura deu-se conta do que se passara. Estralou um a um os dedos da mão esquerda, pressionando-os com o dedão, e encostou-a no chão para se erguer. Os joelhos rasgados incomodavam-no. A panturrilha ainda ardia. Os pés sujos lembravam-no de quanto caminhou.  As solas cobertas por bolhas mapeavam a direção percorrida. Decidiu levantar-se. Fê-lo. Gritou. Apesar das dores, vivia. Ajeitou a camisa amassada. Sorriu ao ver o último cigarro no bolso. Acendeu-o. Mais uma vez alterou o trajeto repetidamente chamado de destino.

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A Promessa de Caeiro

Aos 40 anos, Beto? – balbuciou sua esposa em tom sarcástico quando Alberto afirmou, de peito estufado, em uma reunião de família, que começaria a correr e que, no final do ano, disputaria a corrida de São Silvestre.

Como de praxe, fez-se um silêncio. Em seguida, todos voltaram a seus afazeres sem a mínima atenção. Sua mãe, senhora simples e de elegância ímpar, aos 80 anos,  mirava-o, de sua cadeira de rodas, com o mesmo olhar de reprovação que a acompanhara por décadas.

As promessas anuais de Alberto Caeiro já eram famosas e, ao contrário do homônimo, poeta simples, cuja alma era envolta pela natureza, nosso Caeiro era opulento e adorava repetir como mandara cimentar metade de seu sítio no interior de São Paulo para não sujar seus carros de barro.

Sendo assim, “mais uma promessa vazia…” cochicharam os familiares. Em voz baixa, claro, pois os churrascos da família eram organizados justamente pelo Beto.

No dia seguinte, em uma loja de artigos esportivos, Alberto comprou o tênis que, teoricamente – fez questão de ressaltar a esposa -, o acompanharia nos próximos meses. Ao contrário de seu gosto requintado, aquele era preto com riscos em verde. Nada de mais. Também não possuía molas à mostra nem era do tipo profissional. De forma estranha, encaixava-se bem nos seus pés.

Na primeira semana, Caeiro caminhava em um parque próximo de casa. Eram quarenta e cinco minutos em passos lentos e quinze de um “trote” não muito promissor. Com sua idade, não se esperava muito. A mãe, que morava no apartamento ao lado, encostava-se na janela para observar as belezas do parque e, ao mesmo tempo, seu filho.

A turma de corredores noturnos descansava embaixo de uma árvore frondosa e papeava até altas horas. Alberto, ao contrário, recostava-se em um pequeno Café de esquina e vez ou outra escutava as conversas de algum enfadonho grupo de executivos. Durante duas semanas, o treino foi o mesmo, de final solitário.

Contudo, no início da terceira semana, Amélia reparara naquele preguiçoso estranho que terminava sua segunda volta no parque enquanto os demais já completavam sua quinta. Era difícil não perceber que Beto realmente não sabia o que estava fazendo. O mesmo considerava caro pagar um personal trainer para algo que ele dizia ser intrínseco ao ser humano, isto é, correr ou, no seu pensamento, fugir. Por consequência, a jovem resolveu convidá-lo a correr em sua companhia.

Àqueles que acreditam que nosso protagonista aceitara o convite em face da beleza da jovem, enganam-se. Beirava aos 25 anos, loira, olhos castanhos, óculos da moda, mas, nada além disso. A esposa de Beto, Cristina, ao vê-la, não se sentiu confrontada. Talvez contribuiu o fato de Amélia sempre voltar de carona com uma amiga de infância. Enfim, não era a mais atraente.

De qualquer forma, Amélia despertara em Beto um senso de disciplina incomum. O “trote” desanimado transformou-se em um conjunto de passadas rápidas. A corrida ganhava ritmo e terreno. Para quem não suportaria essa rotina por um mês, Caeiro comemorou os três meses em que separara três dias da semana para se exercitar. O café solitário transformou-se em bate-papos informais sobre televisão e filmes clássicos, uma das paixões de Amélia ao lado de pizzas e cervejas artesanais. Em um dos encontros ela mostrou uma foto, não tão antiga, na qual se encontrava jogada no sofá ao lado de seu cão, o qual parecia um pequeno bicho de pelúcia frente ao tamanho da jovem.

No fim, chegara o grande dia. Beto alongou-se, beijou a esposa e se preparou para a largada. Não almejava terminar a o percurso da São Silvestre, mas também não queria terminar entre os últimos. Temia aproximar-se da linha de chegada e somente encontrar garis recolhendo o lixo acumulado.

No entanto, arrastando-se ao lado da já considerada velha turma da corrida, Alberto Caeiro, com uma rara simplicidade digna do heterônimo de Fernando Pessoa, ultrapassou a linha de chegada, beijou novamente a esposa e deitou-se em um gramado próximo.

Em primeiro lugar, pensou na surpresa dos familiares ao saber que finalmente havia cumprido uma promessa feita. Confrontaría-os com um sorriso malicioso. Contudo, mesmo o opulento Beto percebera como as mudanças fazem bem e que, muitas vezes, não se consegue atingi-las sozinho.

Continuou, dessa forma, a correr. E sua mãe, que o vira normalmente à distância, começou a descer quase todos os dias, munida de sua cadeira de rodas e de um recente bom-humor, para vê-lo se exercitar.

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Entre Sonhos e Obras de Arte

Thomas Steinberg, 33 anos, descrente em signos, fases da lua ou mesmo na existência de algo maior do que seus um metro e noventa e sete de altura. Depois de cinco anos de casado, resolveu enfurnar-se em um Monza 1984/1985, unicamente para não pagar IPVA, e viajar um ano pelo país.

Ao retornar, quase sem economias, dedicou-se à publicidade, ramo em que criatividade e competição caminham pararelos e, em um Congresso sobre Expressionismo Alemão, conheceu Anita, 22 anos, menina simples e dedicada cujo objetivo era tornar-se artista plástica e viver unicamente em prol da arte.

Já estava acostumado com mulheres de pensamentos completamente discrepantes aos seus. Karina, sua ex-mulher, pertencia a três organizações sociais, além de, na visão de Thomas, torrar seu dinheiro todo final de ano, seja presenteando os filhos dos filhos dos vizinhos ou em doações à metade das instituições filantrópicas em São Paulo.

Sendo assim, quando Anita sorriu-lhe no bar dizendo que, em alguns anos, se imaginava envolta de diversas pinturas em seu pequeno apartamento no centro, Thomas já previa uma situação semelhante à anterior. Para qualquer imprevisto, o mapa da última viagem continuava no porta-luvas. De qualquer forma, frente aos olhos azuis da jovem artista, era difícil negar-lhe algum pedido.

Contudo, com um olhar atônito, semelhante ao dos personagens de Nelson Rodrigues, mas, ainda, sem previsão de traições ou assassinatos, os pedidos praticamente não existiam. Sem contar a primeira vez em que saíram, Anita fazia questão de repartir a conta em todos os lugares, do bar ao motel, além de dividir muitos dos afazeres do dia a dia.

Thomas poderia deixar seu orgulho prevalecer e se sentir desconfortável com a situação – o que, de início, realmente aconteceu frente aos olhares de repulsa advindos de garçons por toda São Paulo –, porém, no final do mês, ao acessar o saldo de sua conta bancária, ele não conseguia esconder um sorriso bobo de satisfação. Foram cinco longos anos sem essa sensação.

Neste período, amor e dinheiro eram indissociáveis, sendo o primeiro dependente do outro. Uma vida burguesa nada moderna criava em Thomas uma situação de enclausuramento e desenvolvia um sentimento de culpa a cada momento em que não agradasse à sua ex-esposa com ornamentos fúteis e desnecessários.

Ao casar-se com Anita, três anos depois do sorriso do bar, a carreira desta já estava em ascensão, com seus quadros sendo expostos em espaços internacionais e cobiçados em diversos leilões. Após o nascimento do primeiro filho, ao trocarem de apartamento, Thomas decepcionou-se ao aceitar o dinheiro advindo da venda do primeiro quadro de sua mulher. Este representava a dedicação de Anita na busca pelos seus sonhos. A obra havia sido arrematada por um aristocrata alemão que já considerava a jovem uma artista completa.

Entretanto, não há óbice para se criarem novos sonhos. Anita proferiu estes dizeres, sorriu-lhe com atenção e se dedicou ao filho que se arriscava engatinhando pelos cantos do imóvel. Thomas, neste instante, lembrou-se de como lhe fez bem descartar o mapa de viagem do porta-luvas. E nunca se arrependeu disso.

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Vinho

Descrevia-se como cético e contestador. Seus discursos vazios influenciavam uma minoria preguiçosa na arte de pensar e, por conseguinte, seu ego inflava a ponto de chegar em grandes alturas. Detentor de oratória refinada, acomodava-se próximo aos líderes de sua empresa e acreditava ser imprescindível em seu posto.

Em uma manhã de quinta-feira, em razão de sua lábia e de sua habilidade para o nascimento de debates acalorados em assuntos em que não há necessidade destes, levou dois tiros de um policial militar à paisana após ultrapassar o sinal vermelho em um movimentado cruzamento da cidade.

Viu-se, assim, em uma situação terminal e, minutos depois, com espanto, em uma cantina italiana. A arquitetura desta assimilava-se à de uma igreja, com janelas enormes, vitrais e tijolos carcomidos pelo tempo. Sobre a mesa, uma garrafa de vinho e dois copos. Apesar das cinco mesas no recinto, havia somente estes dois copos, já cheios.

Confiante de que sobreviveria a qualquer desafio, esmiuçou pacientemente o local, contando o número de janelas, os vitrais, os quadros, além da porta, a qual não sentia vontade de sair, talvez por receio – não admitido – do que poderia vir.

Após alguns minutos, escutou passos nos corredores. Pelo barulho e lentidão destes, imaginava ser um homem de idade. Ele portaria uma bengala, em razão do estampido que ouvia antes dos sons dos sapatos.

Curioso, a porta abriu-se. Um jovem alto e magro, de óculos com aros escuros, observou-o dos pés à cabeça. Os cabelos eram escuros e cobriam-lhe os olhos. Sentou-se na cadeira a sua frente. O visitante, assim, sentiu-se apreensivo, normalmente já estava preparado para tudo, mas este rapaz não era bem o que havia imaginado.

– Confortável? – perguntou o jovem, ajeitando os óculos por debaixo dos cabelos.

– Bastante, além do mais o ambiente é acolhedor, de grande beleza. – respondeu o visitante.

– Por que não respondeu apenas “bastante”?

– Justamente porque o ambiente propicia conforto. Apenas ressaltei este ponto.

– Nunca foi de seu feitio ser lacônico, não é?

– De fato, não. Desde pequeno movia multidões com meus discursos inflamantes.

– Também nunca prezou pela modéstia?

– Não. – afirmou o visitante, percebendo, de imediato, a crítica indireta aos seus atos.

– E o que fará após sair desta sala?

-Ajudarei aos demais colegas, como sempre fiz. Contudo, de início, beijarei minha esposa e demonstrarei meu carinho. Puxarei delicadamente seu braço e a convidarei para um belíssimo jantar em algum restaurante japonês caro.

Neste instante, o jovem leva, lentamente, a taça vinho à boca e questiona:

– Ou seja, continuará com a mesma hipocrísia de antes de vir à minha casa?

Não descreveria desta maneira. Embora individualista, preciso auxiliar aos demais, mesmo que seja em prol de meu próprio desenvolvimento. Embora casado, não a amo. Mas, sinto que devo fazê-la feliz. Como você percebe, não sou um Bono Vox e muito menos um Don Juan. Meu cotidiano é oscilante e, se prezasse sempre por justiça e honestidade, talvez não sobrevivesse.

O silêncio envolveu o ambiente.

Diante de tanta sinceridade raramente proferida, o visitante segurou a taça de forma desajeitada e ergueu-a rapidamente antes de saborear o vinho.

Não direi que ao prová-lo, a bondade em seu coração dera pequenos sinais de que ainda queimava, até porque, isto soaria apenas como um trecho de uma nobre poesia. Contudo, abriu-se a única porta do ambiente e o moço ao seu lado começava a observá-lo com atenção.

O silêncio exigia uma decisão do visitante. E, sem pestanejar, ele a tomou. Seguiu pela porta e desceu as escadarias a passos largos. Os óculos, nesse momento, já estavam sob a mesa. Os olhos não exibiam o menor sentimento. Todavia, interessante tentar entender o que nos faz tão hipócritas cotidianamente. Não que isto influencie nossos pensamentos ou traga mudanças reais. Entretanto, ajuda a entender o que envolve, justamente, ser uma pessoa.

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Conhaque

Desde que Ana desapareceu, sem dar notícias, de sua quitinete na Avenida São João, Lucas, ex/atual namorado da jovem, deixava, semanalmente, uma flor, envolta em uma velha garrafa de conhaque, ao lado de sua porta, na esperança de uma ligação ou, pelo menos, uma simples mensagem de agradecimento.

Às quartas-feiras, às nove da manhã, Lucas, com o aval do porteiro, adentrava ao prédio munido de uma rosa e um sorriso, trocava a água do “vaso”, e, rapidamente, retirava-se. Vez ou outra deparava-se com a vizinha, a qual sempre o cumprimentava, mas que prendia sua atenção no pequeno bulldog ansioso por um passeio matinal.

Após seis meses de uma rotina que já incomodava ao síndico e permitia um pingado de padaria ao florista no meio da semana, as flores começaram a sumir. A garrafa, contudo, retornava ao mesmo lugar, como se pedisse por uma próxima flor.

Lerdo ou, apenas, um tonto. De qualquer forma, Lucas continuava a alimentar o corredor de novas flores, sem ao menos um sinal. Inspirava-se em Vinicius de Moraes, poeta que permeava os pensamentos da jovem, e que fê-lo aprender a cuidar corretamente da mulher amada. Mas, mesmo seus pensamentos, esvaneciam sem uma resposta.

No entanto, prestes a livra-se do “vaso” e substituí-lo por outro, sem flores, mas acompanhado de um copo com gelo, a porta do apartamento abriu-se. De início, receio. Seus olhos espantados esmiuçavam lentamente o corpo da jovem. Vestia o básico, calça jeans e camiseta branca. Já havia percebido que as coxas não eram as mesmas e teve certeza ao chegar à cintura. No entanto, ficou satisfeito.

Chegou, finalmente, ao rosto. Uma bela jovem sorria-lhe. Cabelo repicado na altura do pescoço, olhos de tom azul, vivazes, em contraste com a pele clara. Apresentou-se. Disse que se alegrava ao ver, a cada semana, uma nova flor em frente a casa. Agradeceu-o e se retirou.

Lucas continuou a alegrá-la. Não precisou mais da permissão do porteiro para fazê-lo.

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Dois cravos, um cigarro e uma pinga

Dedicou-se 30 anos à vida boêmia junto aos amigos e, após uma forte crise de asma, despediu-se da vida sem uma gota de álcool à boca.

Em seu enterro, aos prantos, os companheiros lamentaram-se da perda. Reuniram, um tanto quanto relutantes, algumas moedas de baixo valor constantes em seus bolsos desgastados. Compraram dois cravos, um cigarro e uma pinga, em garrafa de plástico, os quais representariam o carinho e a amizade que compartilharam por anos.

Despediram-se em definitivo, dos dois cravos.

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