Descrevia-se como cético e contestador. Seus discursos vazios influenciavam uma minoria preguiçosa na arte de pensar e, por conseguinte, seu ego inflava a ponto de chegar em grandes alturas. Detentor de oratória refinada, acomodava-se próximo aos líderes de sua empresa e acreditava ser imprescindível em seu posto.
Em uma manhã de quinta-feira, em razão de sua lábia e de sua habilidade para o nascimento de debates acalorados em assuntos em que não há necessidade destes, levou dois tiros de um policial militar à paisana após ultrapassar o sinal vermelho em um movimentado cruzamento da cidade.
Viu-se, assim, em uma situação terminal e, minutos depois, com espanto, em uma cantina italiana. A arquitetura desta assimilava-se à de uma igreja, com janelas enormes, vitrais e tijolos carcomidos pelo tempo. Sobre a mesa, uma garrafa de vinho e dois copos. Apesar das cinco mesas no recinto, havia somente estes dois copos, já cheios.
Confiante de que sobreviveria a qualquer desafio, esmiuçou pacientemente o local, contando o número de janelas, os vitrais, os quadros, além da porta, a qual não sentia vontade de sair, talvez por receio – não admitido – do que poderia vir.
Após alguns minutos, escutou passos nos corredores. Pelo barulho e lentidão destes, imaginava ser um homem de idade. Ele portaria uma bengala, em razão do estampido que ouvia antes dos sons dos sapatos.
Curioso, a porta abriu-se. Um jovem alto e magro, de óculos com aros escuros, observou-o dos pés à cabeça. Os cabelos eram escuros e cobriam-lhe os olhos. Sentou-se na cadeira a sua frente. O visitante, assim, sentiu-se apreensivo, normalmente já estava preparado para tudo, mas este rapaz não era bem o que havia imaginado.
– Confortável? – perguntou o jovem, ajeitando os óculos por debaixo dos cabelos.
– Bastante, além do mais o ambiente é acolhedor, de grande beleza. – respondeu o visitante.
– Por que não respondeu apenas “bastante”?
– Justamente porque o ambiente propicia conforto. Apenas ressaltei este ponto.
– Nunca foi de seu feitio ser lacônico, não é?
– De fato, não. Desde pequeno movia multidões com meus discursos inflamantes.
– Também nunca prezou pela modéstia?
– Não. – afirmou o visitante, percebendo, de imediato, a crítica indireta aos seus atos.
– E o que fará após sair desta sala?
-Ajudarei aos demais colegas, como sempre fiz. Contudo, de início, beijarei minha esposa e demonstrarei meu carinho. Puxarei delicadamente seu braço e a convidarei para um belíssimo jantar em algum restaurante japonês caro.
Neste instante, o jovem leva, lentamente, a taça vinho à boca e questiona:
– Ou seja, continuará com a mesma hipocrísia de antes de vir à minha casa?
Não descreveria desta maneira. Embora individualista, preciso auxiliar aos demais, mesmo que seja em prol de meu próprio desenvolvimento. Embora casado, não a amo. Mas, sinto que devo fazê-la feliz. Como você percebe, não sou um Bono Vox e muito menos um Don Juan. Meu cotidiano é oscilante e, se prezasse sempre por justiça e honestidade, talvez não sobrevivesse.
O silêncio envolveu o ambiente.
Diante de tanta sinceridade raramente proferida, o visitante segurou a taça de forma desajeitada e ergueu-a rapidamente antes de saborear o vinho.
Não direi que ao prová-lo, a bondade em seu coração dera pequenos sinais de que ainda queimava, até porque, isto soaria apenas como um trecho de uma nobre poesia. Contudo, abriu-se a única porta do ambiente e o moço ao seu lado começava a observá-lo com atenção.
O silêncio exigia uma decisão do visitante. E, sem pestanejar, ele a tomou. Seguiu pela porta e desceu as escadarias a passos largos. Os óculos, nesse momento, já estavam sob a mesa. Os olhos não exibiam o menor sentimento. Todavia, interessante tentar entender o que nos faz tão hipócritas cotidianamente. Não que isto influencie nossos pensamentos ou traga mudanças reais. Entretanto, ajuda a entender o que envolve, justamente, ser uma pessoa.