O Personagem Principal de uma Ficção Caseira

Antenor, de cabelos brancos e cicatriz que transpassa verticalmente a boca, sentado na Praça Marechal Deodoro, no centro de São Paulo, em uma terça-feira de sol, não reclama da vida. Abomina este ato, afirmando que apenas ajuda a  “disseminar a negatividade entre as pessoas”.

Sobre esta frase, foi questionado pela Dona Edileusa, senhora com pose de fina, a la madame de novela global e corcunda saliente, moradora do bairro de Santa Cecília, se não deveria incluir os animais neste grupo, como sua cachorrinha Luli, uma poodle tosada e enfeitada, entretida com o movimento dos carros, que a acompanha em passeios diários há mais de dez anos.

Ademais, a senhora de colares vistosos e vestido florido, discursou sobre a escassez de produtos no supermercado, ofendeu a menina barulhenta do apartamento 21 e comentou da “infestação” de moradores de rua na região.

De educação ímpar, diferentemente do apelo midiático derivado do cotidiano de (in)felizes donas de casa, Antenor não vê seu animal de estimação como uma pessoa. Esta é complexa, repleta de discursos e posicionamentos, capaz de debater e rebater diversos pontos de vista. O cachorro é, simplesmente, seu fiel companheiro. Necessita e compartilha carinho, mas não é capaz de devanear sobre a vida além de um latido.

Como tratar o animal de estimação como o personagem principal de uma ficção caseira se, ao lado de casa, a realidade bate à porta almejando por comida?

Dona Edileusa retirou-se. A ração francesa aguardava por Luli. Antenor, lentamente, estendeu seu colchão de retalhos e, religiosamente, guardou seus sapatos em uma pequena “toca do Gugu”, em meio ao mato, e começou a pensar.

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